A
Professora e a Maleta
Lygia Bojunga Nunes
A professora era gorducha; a maleta também. A Professora era jovem; a maleta
era velha, meio estragada, e de um lado tinha o desenho de um garoto e uma
garota de mãos dadas, vestindo igual, cabelo igual, risada igual.
A professora gostava de ver a classe contente, mal entrava na aula e já ia
contando uma coisa engraçada. Depois abria a maleta e escolhia o pacote do dia.
Tinha pacote pequenininho, médio, grande, tinha pacote embrulhado em papel de
seda, metido em saquinho de plástico, tinha pacote tudo quanto é cor; não era à
toa que a maleta ficava gorda daquele jeito.
Só pela cor do pacote as crianças já sabiam o que ia acontecer. Pacote azul era
dia de inventar brincadeira de juntar menino e menina; não ficava mais valendo
aquela história mofada de menino só brinca disso, menina só brinca daquilo,
meninos do lado de cá, meninas do lado de lá. Pacote cor-de-rosa era dia de
aprender a cozinhar. A professora remexia no pacote, entrava e saia da classe
e, de repente, pronto! Montava um fogão com bujãozinho de gás e tudo. Era um
tal de experimentar receita que só vendo.
Pacote vermelho era dia de viajar: saía retrato do mundo inteiro de lá do fundo
do pacote; espalhavam aquilo tudo pela classe; enfileiravam as carteiras pra
fingir de avião e de trem; quando chegavam nos retratos um ia contando pro
outro tudo que sabia do lugar.
Tinha um pacote cor-de-burro-quando-foge que a Professora nunca chegou a abrir.
Todo dia ela botava o pacote em cima da mesa. Mas na hora de abrir ficava
pensando se abria ou não, e acabava guardando o pacote de novo.
Pacote verde era dia de aprender a pregar botão, botar fecho, fazer bainha na
calça e na saia. Se o verde era bem forte, era dia de aprender a cortar unha e
cabelo. Verde bem clarinho era dia de consertar sapato. E tinha um verde, que
não era forte nem claro, era um verde amarelado, que as crianças adoravam: era
dia da professora abrir pacote de história. Cada história ótima.
E tinha um pacote branco que só servia pra Professora esconder e pra turma
brincar de achar. Quem achava ia pro quadro-negro dar aula. No princípio
ninguém procurava direito: coisa mais chata dar aula! E aula de quê?
__ Conta a tua vida, ué, mostra o que você sabe fazer.
Com o
tempo, a turma deu pra procurar direito
o pacote: achava engraçada a tal aula.
No dia
que Alexandre achou o pacote, resolveu contar pra turma como é que ele vendia
amendoim na praia. No melhor da aula, um grupo de pais de alunos, que estava
visitando a escola, entrou na sala. Quando a aula acabou, um deles perguntou
pra Professora:
- A
senhora está querendo ensinar meu filho ganhar a vida vendendo amendoim?
A
Professora explicou que Alexandre só estava contando pros colegas como era o
trabalho dele, pra todos ficarem sabendo como é que ele vivia.
No outro
dia saiu fofoca: contaram pra Alexandre que tinha um pessoal que não estava
gostando da maleta da Professora.
- Que
pessoal?
Um disse
que era a diretora, outro disse que era uma outra professora, outro disse que
era o pai de um aluno, outro falou que era o faxineiro, e foi um tal de um
disse que o outro falou, que ninguém ficou sabendo direito.
Aí uns
dias depois, choveu muito. Chuva grossa. Encheu rua, o tráfego da cidade parou,
casa desmoronou, coisa à beça aconteceu. Quase ninguém foi à escola. Mas
Alexandre foi. Entrou na classe e viu tudo vazio; chovia demais pra voltar pra
casa; resolveu sentar e esperar. Lá pelas tantas a professora chegou. Mas
chegou sem a maleta. E com um jeito diferente, uma cara meio inchada, não
contou coisa gozada, não riu de nada. Sentou e ficou olhando pro chão. Alexandre
achou que ela nem tinha visto ele:
-Oi !
Ela
também disse oi, e continuou quieta. Depois de um tempo, Alexandre cansou de
tanto ninguém dizer nada e falou:
- A chuva
molhou sua cara.
A
professora nem se mexeu. Ele perguntou:
- Foi
chuva?
Ela fez
que sim com a cabeça. Alexandre resolveu esperar mais um pouco. Mas pelo jeito,
a professora tinha esquecido de dar aula. Será que era porque ela não tinha
trazido a maleta? Arriscou:
- Cadê a
maleta?
A
professora olhou pra ele sem saber muito bem o que é que dizia. Ele insistiu:
- Hem?
Cadê?
- Perdi.
Ele se
apavorou:
- Com
tudo que tinha lá dentro?
- É.
- Os
pacotes todos?
- É.
- O azul,
o verde, o...
- É, é,
é!!
Puxa que
susto! Ela nunca tinha falado alto assim. Não perguntou mais nada, o coração
ficou batendo, batendo, mas ela continuava sempre quieta, tão quieta que ele
acabou não aguentando e perguntou de novo:
- Mas e
agora? Como é que você vai dar aula sem a maleta?
- Não
sei.
-
Mas...escuta... você já procurou bem? – Ela fez que sim com a cabeça. – Botou
anúncio no jornal? Diz que quando a gente bota anúncio quem acha dá prá gente.
– Ela ficou quieta. – Botou?
- Botei.
- Ninguém
achou?
- Não.
- Então
como é que vai ser?
- Não
sei.
- Dá
jeito de você comprar os pacotes de novo?
- Não.
- Por
quê? – Ela não disse nada. – Responde. Por quê?
- Eles
vem junto com a maleta; não vendem separado.
- Mas
então compra outra maleta, pronto! – Ela ficou quieta de novo. E como o tempo
ia passando e ela continuava sempre quieta, e a cara não secava nunca e não
chovia lá dentro e a cara cada vez mais molhada, ele acabou pedindo:
- Compra,
sim?
- Não dá,
Alexandre. Eles não estão mais fabricando essas maletas hoje em dia.
E aí ele
não perguntou mais nada. Ela também não falou mais. Até que a campainha tocou e
a aula acabou.
A
situação em casa continuava apertada; domingo Alexandre ia pra praia; era dia
de vender amendoim. Depois começou a vender sábado e domingo. Batia papo com
todo mundo, gostavam dele, vendia bem. As férias começaram. Alexandre deu pra
vender na sexta-feira também. Na quinta-feira. Na quarta. Depois só não ia se
chovia. Já estava chegando outra vez o tempo de aula quando Augusto se apaixonou,
quis casar. Mas pra casar precisava comprar tantas coisas, fogão, móvel,
colchão, como é que o dinheiro ia dar? A mãe de Alexandre falou:
- Quem
sabe é melhor o Alexandre parar de estudar pra ficar trabalhando...
Referência:
BOJUNGA, Lygia. A casa da madrinha. 9. ed. Rio de
Janeiro: Agir, 1986.
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